Luz e Sombra: A Dança que Nos Torna Inteiros
Por
Camile Viêira
Terapeuta integrativa e idealizadora do Projeto Semeando Transformações
Luz e Sombra: A Dança que Nos Torna Inteiros
Do latim lux, luz remete à claridade, ao que se torna visível, à consciência. Sombra, por sua vez, vem do latim umbra, que significa escuro, oculto, velado. Ambas não são opostas em essência, mas complementares: uma revela, a outra guarda. E é na relação entre elas que habita o nosso processo de cura e integração.
Talvez mais importante do que entender racionalmente o que é luz e sombra seja reconhecer como essas forças se manifestam em nós. Somos seres cíclicos e dinâmicos, que oscilam constantemente entre momentos de clareza e escuridão, consciência e inconsciência. Compreender essa dança interna com presença e verdade é o que nos permite avançar — não só em nosso processo individual, mas também no coletivo.
No mundo contemporâneo, há uma exaltação quase inquestionável da luz: cultua-se a positividade, a produtividade, o sucesso e o ideal de estar sempre bem. Somos constantemente incentivados a aprimorar nossos talentos, brilhar em nossas conquistas, mostrar resiliência e otimismo — e, sim, isso tem seu valor.
No entanto, com menos frequência somos convidados a fazer um mergulho mais profundo. A cultura da alta performance não nos ensina a acolher a vulnerabilidade, a escutar o medo ou reconhecer a raiva. Falar de dor, cansaço ou falhas ainda é visto como sinal de fraqueza, e não como parte legítima da experiência humana.
Ao ignorarmos a sombra, nos afastamos da inteireza. Fingimos não ver o que é desconfortável — nossas dores, raivas, medos, desejos, impulsos e máscaras — e nos tornamos reféns de uma imagem idealizada de nós mesmos.
Como bem coloca Freud, a mente humana é como um iceberg: a parte consciente é apenas a ponta visível. A maior parte da nossa psique — submersa no inconsciente — abriga conteúdos reprimidos, feridas não curadas, traumas ocultos e até memórias esquecidas. Aquilo que negamos ou não conseguimos integrar retorna por vias inconscientes: em sintomas, sonhos, repetições, doenças e sabotagens.
Essas manifestações não surgem por acaso — elas carregam mensagens sobre o que precisa ser visto, compreendido e curado. São convites silenciosos para que possamos trilhar um caminho de autoconhecimento e transformação.
Jung amplia essa visão ao dizer que a sombra abriga não apenas o que foi reprimido, mas também o que jamais teve espaço para nascer. Para ele, "ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por tornar consciente a escuridão". Segundo Jung, a sombra contém não só os aspectos que consideramos negativos, mas também aspectos luminosos que foram negadas por medo, vergonha ou inadequação social. Integrá-la é parte essencial do processo de individuação — o tornar-se quem realmente somos, em essência.
Já na filosofia, Platão, em seu célebre Mito da Caverna, nos convida a refletir sobre as ilusões que tomamos como verdades. Os prisioneiros acorrentados dentro da caverna enxergam apenas sombras projetadas na parede e acreditam que aquilo é a realidade. Mas a verdadeira libertação ocorre quando um deles se solta, sai da caverna e, ao encontrar a luz do sol, compreende que tudo o que via antes eram apenas reflexos — fragmentos de uma verdade maior. Assim como esses prisioneiros, muitas vezes estamos presos às projeções da nossa própria sombra e confundimos crenças limitantes com verdades absolutas.
Reconhecer a luz que habita em nós é essencial, mas ter humildade para olhar para a sombra é primordial. A sombra não é um erro ou um problema a ser eliminado. Ela é parte de quem somos. Somos humanos vivendo uma experiência dual: somos luz e somos sombra.
Mas, em essência, somos um com o Todo. A sensação de dualidade é apenas um reflexo da consciência ainda fragmentada em que vivemos.
Integrar essas polaridades é o que nos torna inteiros, não perfeitos. É entender que nossas fragilidades são portais para a compaixão, e nossas sombras, fontes de força latente. Nossas "deficiências" podem ser, na verdade, nossas maiores oportunidades de transformação.
Clarissa Pinkola Estés, em seu poderoso livro Mulheres que Correm com os Lobos, traz o conto de "Barba Azul" como um arquétipo da sombra destrutiva. Ele representa o predador interno — aquele aspecto que tenta nos impedir de enxergar a verdade, calando a intuição e sabotando o crescimento. O confronto com esse predador psíquico é um rito de passagem essencial para a mulher que deseja reconectar-se com sua natureza instintiva. Olhar para a sombra, nesse contexto, é romper com o silêncio interior e resgatar a alma selvagem esquecida.
De acordo com a autora, a sombra é também território de morte simbólica — um processo psíquico em que antigas formas de ser, padrões, ilusões ou identidades precisam "morrer" para que algo novo possa nascer. Essa morte não é física, mas representa o fim de uma versão limitada de nós mesmos.
Clarissa nos ensina que negar esses ciclos internos — de morte e renascimento — é negar a própria natureza selvagem da psique. Romper com o predador interno, é permitir que partes adormecidas ou silenciadas da alma despertem. E todo caminho de cura profunda exige atravessar a escuridão.
Ser integral é acolher a dança entre luz e sombra. É honrar nossas contradições. É entender que este caminho não acontece apenas na meditação, na oração ou no momento de paz — mas também na raiva, na inveja, na dor, no desconforto que nos leva a crescer. Cada parte tem um propósito. Cada faceta carrega uma mensagem.
Em vez de tentar eliminar a sombra, o verdadeiro convite é esse: Dançar com ela.
Convidá-la para a roda da vida, escutá-la com atenção e aprender com tudo o que ela tem a nos dizer.
Porque luz e sombra não são opostas — são expressões diferentes da mesma origem divina, do TODO.
E é nessa dança entre luz e sombra que nos tornamos inteiros.
— Camile Viêira
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REFERÊNCIAS
- FREUD, Sigmund. O Ego e o Id. Livro 14. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
- FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos (1900). Obras completas, v. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
- JUNG, Carl Gustav. O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
- PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2023.
- ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que Correm com os Lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
- VIÊIRA, Camile. A Natureza da Cura. Trabalho de conclusão de curso (Especialização em Psicologia Transpessoal) — Universidade Internacional da Paz (Unipaz Paraná), Curitiba, 2021.